A CRIAÇÃO DO
SIESP NA AMAN

Republicamos a seguir interessante e importante texto escrito pelo Tuducax
Gen Ex Câmara Senna.

 

Era o ano de 1967, período mais intenso da Guerra do Vietnã, em que as forças de guerrilha Vietnamitas estavam levando vantagem sobre o Exército mais potente do mundo.
No Brasil, vivíamos um período em que atuavam grupos de guerrilhas que buscavam organizar no país um forte foco, que evoluísse gradualmente para a luta armada, com a consequente tomada do poder, à semelhança de Cuba, da China e de outros países comunistas.
No Exército vivia-se uma dicotomia entre uma doutrina baseada na Segunda Guerra Mundial, com o consequente preparo da Força Terrestre voltado para um conflito convencional e, na prática, seu emprego real era predominantemente em ações de GLO (na época denominada Defesa Interna).
Os cadetes eram preparados na AMAN para uma guerra convencional, porém estavam sendo empregados, quando formados, em operações reais de contraguerrilha. Desse paradoxo entre o preparo e o emprego real da tropa surgiu, na AMAN, o sentimento de que algo deveria ser mudado na instrução do cadete. Surgiu daí a ideia de formar um núcleo de oficiais “Comandos” em condições de organizar o Departamento de Instrução Especial (DIESP) e serem os seus instrutores pioneiros.
Ao final do Curso de Comandos na Brigada Paraquedista, regressamos à AMAN e iniciamos os trabalhos. Algumas semanas depois foi designado o TC Jofre, professor da AMAN e paraquedista para ser o Instrutor Chefe pioneiro e que havia aceitado o desafio de organizar o DIESP. Nos disponibilizaram, para instalar o Departamento, duas salas na área das garagens do Curso Básico.
A missão que nos foi dada foi muito sintética ou seja: “vocês têm que modernizar a instrução da AMAN” com a finalidade de preparar tenentes para a guerra do futuro, a guerra “não convencional”. Para isso, nos deram “carta branca” para fazermos o que fosse necessário para que, já no segundo semestre de 67, fossem realizados os primeiros estágios para os cadetes do quarto ano.
Foi um árduo trabalho inicial, em que planejamos os primeiros estágios, reconhecemos e selecionamos os diversos locais dos exercícios, montamos o AIESP (a área de treinamento básico), o Campo Escola de Montanhismo nas Agulhas Negras, etc.
Recebemos a orientação do TC Jofre, Instrutor Chefe pioneiro, para sermos “diferentes” dos demais instrutores da AMAN. Deveríamos usar uniformes e equipamentos diferentes e, ainda me lembro, a seguinte orientação que nos foi passada: “Quando um instrutor do DIESP entrar no Conjunto Principal deve despertar a atenção de todos. Os cadetes têm que espontaneamente parar para ver e admirar esses instrutores”. Realmente um exagero, mas aos poucos isso realmente foi acontecendo. Éramos uma equipe de “Comandos” levando novas táticas de guerra e processos de instrução revolucionários e muito mais rigorosos.
Vencemos muitos paradigmas, passamos a usar pela primeira vez o uniforme camuflado, o brevê de Comandos no ombro, boina preta, pistola, faca e equipamento de montanha. Algumas vezes entrávamos no Conjunto Principal de mochila e fuzil, aliás sem muita razão, a não ser, para sermos diferentes. Acho que isso deu certo pois éramos quase que “endeusados” pelos cadetes.
Fora dos estágios, os tratávamos sem nenhuma arrogância ou superioridade e, até hoje, eles lembram com grande satisfação suas passagens pela SIESP. Interessante é que hoje, vários deles foram os generais do Alto Comando do Exército, do Superior Tribunal Militar e Ministros do Governo Federal.
No segundo semestre, demos início ao primeiro estágio de Fuga e Evasão com o quarto ano dos Cursos de Infantaria e Cavalaria (turma de 1967). Eles foram os cadetes pioneiros da SIESP. A reação dos cadetes foi a melhor possível. Nas pesquisas que realizamos, mais de 90% deles elogiavam a maneira como o estágio foi conduzido e comentavam que esse era realmente o tipo de instrução moderna e desafiadora, que os preparava para as operações reais nas quais estariam envolvidos nos próximos anos.
Nesse ano de 1967, realizamos estágios de Fuga e Evasão e de Contraguerrilha para o 4ºano, estágios de Patrulha para 3º ano e de Montanhismo para o 2º ano. Nós, instrutores pioneiros da SIESP, tivemos um encargo extra muito desgastante. Tivemos que reconhecer todos as trilhas dos exercícios de patrulha, de fuga e evasão, e de montanhismo. A principal área de instrução era o Pico da Agulhas Negras com 2800 metros de altura e temperatura abaixo de zero no inverno. O ar era rarefeito e nos cansávamos muito mais. Um desses reconhecimentos foi muito marcante. Eu e o Cap Siqueira saímos de Mauá e fizemos a escalada do Pico das Agulhas Negras, por uma rota ainda desconhecida, procurando um itinerário para um estágio de fuga e evasão. Tudo era muito arriscado naquela época. Saímos cedo, nós dois, sem carta, sem guia de montanha, sem comunicações e sem apoio médico ou resgate. Escalamos sem saber se conseguiríamos vencer todos os obstáculos e, por sorte, sem acidente, conseguimos chegar ao Abrigo Rebouças. Foi realmente uma imprudência, mas essa era a maneira que tínhamos que agir para conseguirmos montar os estágios. Ou se fazia assim ou não cumpríamos a missão.
Nós, instrutores, acompanhávamos as patrulhas de estagiários nos exercícios, sofrendo com eles as mesmas dificuldades. Lembro-me de uma vez que, próximo ao pico das Agulhas Negras, a temperatura estava menos 5 graus. Eu estava acompanhando uma patrulha num estágio de montanha e paramos para passar a noite ao relento. Entrei no “saco de dormir” e quando acordei por volta da 5 da manhã o plástico estava com placas de gelo, ou seja, dormi por umas 6 horas em um casulo de gelo e o detalhe é que estava tão cansado que não senti frio. Fui aquecido pela própria respiração no interior do abrigo.
Não posso deixar de mencionar a importante participação do Cel Pqdt Jofre, Instrutor-Chefe pioneiro, já falecido, mas que deixou a sua inesquecível marca nessa fase de implantação da SIESP. Foi antes de tudo um grande líder que tivemos, e um grande exemplo para toda a AMAN.
Ainda no ano de 1967, realizamos na AMAN um novo Curso de Comandos, com a finalidade de formar uma nova equipe de instrutores da SIESP. Esse curso foi considerado também como um curso oficial da Brigada Paraquedista. Os instrutores éramos nós, da SIESP, reforçados, em alguns estágios, por instrutores Comandos e Forças Especiais da Brigada Paraquedista. Os dois últimos estágios desse curso foram realizados no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. No estágio de Fuga e Evasão os alunos tiveram que progredir, em sobrevivência na selva amazônica, por aproximadamente 20 km até serem resgatados. Nós, instrutores da SIESP, acompanhamos esse deslocamento. Alguns instrutores e alunos pegaram uma doença da selva denominada Leishmaniose, mas foram tratados com uma medicação nova e foram todos curados.
No ano seguinte esses novos Comandos já foram empregados como reforço aos instrutores da SIESP.
Em 1968 assumiu a Chefia da SIESP o Cap Siqueira (depois Cmt da Brigada Paraquedista) prosseguindo o trabalho iniciado pelo TC Jofre. Em 1969 eu era o único remanescente da equipe de “instrutores pioneiros” na SIESP. O Instrutor Chefe nesse ano foi o TC Wilber, que havia sido formado Comandos no Curso realizado em 1967. A SIESP, desde a sua criação, passou por momentos difíceis, talvez por ter rompido paradigmas, incomodado em algumas situações os demais Cursos da AMAN e causado melindres em alguns instrutores mais tradicionais, pela enorme aceitação que teve por parte dos cadetes.
Em alguns momentos, por não ser bem compreendida, a SIESP foi até ameaçada de ser fechada. Conseguimos vencer, com muita tenacidade e diplomacia, todos os obstáculos e, pouco a pouco, os demais cursos passaram a incorporar ensinamentos dessa instrução especial. Os currículos da AMAN foram modernizados e os novos Aspirante se apresentava na tropa com melhor preparo, e uma mentalidade moderna e mais “guerreira”.
Muito me orgulho dos anos vividos na AMAN (de 1966 a 1969). Colaboramos significativamente para o aprimoramento da operacionalidade do Exército. O esforço não foi em vão. Guardo excelentes lembranças de todos aqueles que trabalharam comigo naquela empreitada pioneira e dos cadetes das turmas de 67, 68, 69 e 70, que compreenderam a necessidade daquele tipo de instrução e que depois passaram a ser os novos instrutores da SIESP, instrutores dos outros Centros de Instrução e das nossas Escolas de Formação e Aperfeiçoamento, difundindo os ensinamentos recebidos no pioneiro “DIESP”.
“Falando-se de Instrução Militar, a SIESP foi a coisa mais importante que aconteceu no EB depois da 2ª Guerra Mundial”(palavras do Gen Pqdt Siqueira)