O CARRINHO DE COMPRAS
Há sempre alguém bisbilhotando a sua vida, no presente, no passado e no futuro. No presente, é agora, hoje em dia, você vai passando e alguém fica olhando, procurando penetrar nos seus pensamentos ou adivinhar o que você está fazendo. No passado, quando alguma vizinha muito radical foi entregar você à sua mãe por que viu você jogando uma pedra na vidraça de um carro, nada de mais... E no futuro, diante de você e talvez de seus pais, faz a pergunta clássica: o que você quer ser quando crescer? As crianças geralmente têm respostas automáticas, teleguiados que são pelos pais. E, nem sabem o que significa ser quando crescer.
Estes são alguns exemplos simples, melhor dizer, clássicos: todos já passaram por tal sufoco.
Mas, um dia, em passado recente, estava eu com o carrinho de compras na fila do caixa, aguardando a vez. Na retaguarda, “en passant”, um médico (só podia ser médico funcionário público – meio da tarde, de roupa branca, sapatos brancos, barba por fazer) - ele parou e ficou olhando para o meu carrinho.
Ora, convenhamos: uma atitude muito estranha. Parar no meio daquele pessoal todo, ficar olhando, quando eu admiti que ele estivesse só de passagem. Então, eu perguntei:
- Está buscando inspiração nas minhas compras?
- Não, ‘tô vendo muita carne... E apontou para as bandejas de carne bem dispostas no carro.
- Primeiro, cuide de sua vida. Segundo, você não parece um médico de tão imundo e com a barba por fazer! Vá se cuidar! A estas alturas, meu tom de voz foi subindo.
As pessoas que estavam em volta de nós, perceberam a besteira do médico com aquela atitude nada médica, ética e educada. O sujeitinho ficou sem resposta e sumiu.
Esta é uma blindagem que eu adoto para ninguém ficar dando palpite em minha vida. Sempre fui assim. Não é zanga e nem demérito. Não admito que se metam em minha vida...
A HORA CERTA
Em Fortaleza, existe a internacionalmente conhecida Praça do Ferreira. No passado, era o centro de compras com todos os tipos de comércio atacadista e no varejo, no seu em torno. Duas ruas principais pertencem ao seu perímetro: Ruas Major Facundo e Floriano Peixoto. São os lados maiores. Nos lados menores, temos a Travessa Pará e a Rua Pedro Borges. Ao centro, havia a Coluna da Hora, com um relógio de quatro faces. Suas badaladas, quando a cidade era menor e mais silenciosa até de dia, a gente escutava o bimbalhar de seu sino a uma distância muito longa.
Uma loja pequena, mas muito tradicional, era a relojoaria A Hora Certa. Com duas portas de acesso, na sua coluna central, um imenso relógio. Na placa acima da calçada, outro relógio imenso. Não havia como deixar de se saber das horas, passando em sua frente. Quase todo mundo conferia se o seu relógio de pulso ou os raros de algibeira. Era hábito incorporado ao povo passante.
Naquele tempo, eu meninão, nunca tinha tido um relógio. Minha mãe nuca me dera um, por que não podia, e meu pai, desquitado de minha mãe não assumira o lar, quanto mais o relógio de um menino...
Pois bem, um dia eu ia passando pela Praça do Ferreira. Sem relógio de pulso como disse acima. Ia meio apressado, pois estava atrasado. Não sei mais os motivos. Mas, que eu ia bem ligeiro. De repente, um senhor bem, parecido, portando chapéu de feltro e bengala ouviu a minha pergunta, estava parado querendo atravessar a rua. Parei e lhe perguntei de chofre:
- Que horas são?
Sem abrir a boca, num gesto rompante, com a bengala ele apontou para a coluna da Hora e para os relógios da Hora Certa... Fiquei mudo de ódio. Como foi que fui cair numa daquelas? Um balaio de relógios à disposição, e eu importunando aquele senhor que mais parecia o meu avô materno. Aqui foi uma ofensa para mim... Deixe estar, ainda pego alguém.
Os anos passaram, duas décadas talvez. Estava na esquina do pecado com amigos vendo as meninas da Escola Normal e Imaculada desfilando rumo às suas casas, quando eis que surge o nada, um magrelo, meio galalau, cara de abestado e me pergunta as horas:
- Que horas são, por favor?
Aí foi a minha vingança e a minha correção. Sem bengalas, apontei para a Coluna da Hora e ao mesmo tempo, para a Hora Certa. Ri dentro de mim...Foi hoje! Lavei a honra!
- O cara olhou para Coluna, olhou para a Hora Certa, engoliu em seco e ainda agradeceu...
EM BUSCA DE INSPIRAÇÃO
Eu, sempre, como dono do carrinho de compras.
O que varia é o outro circunstante. O supermercado era novo, recém-aberto ao público no miolo da Aldeota. Estava acontecendo um fenômeno novo: os açougues de esquina foram se acabando à míngua e os supermercados participando intensamente do mercado da carne (bovina, ovina, caprina, frango abatido e frango congelado; peixaria. Tudo em benefício do consumidor –: o besta.
Bem, estava eu rolando o meu carrinho. Na Seção de bebidas apanhei um uísque de boa marca e outro destilado tipo vodka de origem pelo menos no nome russo. Fui adiante. Ali adiante, um vinho português e tome queijos e azeitonas. Meu aniversário estava chegando pela esquina do mês. Tinha que me preparar sem muitas badalações. Numa paradinha que eu dei, meio distraído, sou surpreendido por um senhor, Oficial de Intendência, gerações mais antigo do que eu, extasiado pela supimpa escolha dos produtos que eu conduzia. Lá vai falação, este panaca quer se meter comigo, me censurar, vá se danar! Ruminando os meus pensamentos num átimo, eu me preparei para soltar fumaça pelas fuças. Não que eu seja pavio curto, eu tenho mesmo é um repertório digno de um marinheiro cais do porto cheio de impropérios e desideratos... Eu me preparei.
- Que horas são? De novo as horas, de novo um cara me olhando ou para o carrinho. É muito assunto se enrolando um com o outro. Arrêgo.
-
- 10:45 Horas, quase onze.
-
O bicho foi embora meio enrolado, meio engasgado, sei lá o quê.
O MÉDICO E O ESPELHO
Uma típica cena de rua. Eu indo como os outros pelo meu canto de calçada. Os outros vindo normalmente. Mão e contra-mão. Ordenamento e progresso. Liberdade de ir e vir. Há sempre aquele impacto de querer cruzar a rua, buscando a outra calçada, cem metros da faixa do pedestre. Vou e não vou. Nesta hora eu me lembro das galinhas nas estradas da vida. Quando estão chegando no lado oposto, sentem uma tremenda insegurança e voltam na mesma pisada ou quase vôo. Bem, acabei indo.
Na outra calçada, encontro com um médico colega dos tempos de menino. Baixinho, ex-atleta de basquete (pivô), amigo de lacônicos cumprimentos. Falamo-nos, paramos um pouquinho. Fazia muitos anos que a gente não se via. Foi nisso que eu me lembrei que ele tinha sido atleta de basquete, aguerrido e arrojado. E a vasta barriga? Perguntei.
Para que eu fui mexer com o homem? Um rompante troou:
- Na sua casa não tem espelho, não?
Calado, dei-lhe as costas e fui embora. Cabra atrevido. Mas, não sem razão. Primeiro, eu tinha que cuidar de minha vida, do meu corpo e não ficar reparando o perfil dos antagonistas da vida... Engoli em seco. Nunca mais. |