NOCCHI
O sábado estava muito frio, e eu procurando me recuperar
de um fortíssimo resfriado pós-feriadão. Fiquei em casa
assistindo à emocionante final do “Soletrando”, um duelo
polarizado entre o viçosense Pedro Henrique (será que o
Fontenele acompanhava o conterrâneo?) e a pernambucana
Larissa. Minha torcida era pela menina, aluna brilhante
do CMR, mas lamentei quando o menino foi derrotado pela
palavra “palimpsesto”, técnica de reaproveitamento de
pergaminho, ou seja, uma coisa que não se usa desde que
inventaram o papel. Antes só vi esse palavrão nos livros
ginasianos de Geografia e História de Borges Hermida ou
Haroldo de Azevedo. Sinceramente quem sugeriu uma
palavra dessas é um sádico de marca maior.
Terminado o programa fui dar uma garimpada na internet,
e aí a terrível notícia: o Nocchi falecera naquela
manhã. Mais tarde outras notícias sobre velório e
sepultamento. Chegava ao fim uma rápida tentativa de
tratamento de insidiosa moléstia que levou nosso amigo.
Oriundo do meio civil – é um dos homenageados no PPS “Os
Onze”, no site da nossa Turma, só vim a conhecê-lo no
convívio da Intendência, no 2º Ano. Tinha uma incrível
facilidade para fazer e conservar amigos. Intercalava
momentos de sagacidade com outros em que dava uma falsa
impressão de desatenção total, mas era nessas horas que
a inteligência funcionava a mil, com soluções certas e
inesperadas. Irreverente, riso espontâneo parecia não
dar bola para a vida. Parecia, somente: era responsável
quando necessário, dedicado ao que se propunha fazer, e,
sobretudo leal para com os companheiros.
Quando não tinha desafios, criava-os, para mostrar que
venceria. Ficou famosa sua decisão de tirar Dez nas
provas do “Velho Mé”, um professor à antiga, que sempre
tirava uma gaivota de quem não respondesse “ipsis
litteris” o que estava no livro de sua autoria (Cel
Benedicto de Andrade). Solução; em poucos dias decorou
todo o livro de Contabilidade Pública, e divertia-se
caminhando pela Ala, fazendo as citações das vírgulas,
travessões, e até dos números das páginas, para
desespero dos colegas que não tinham neurônios tão
potentes para a memorização. Ao contrário do que pudesse
parecer, não era um decoreba daqueles que nada
assimilam. Sabia muito bem interpretar o que lia e obter
ensinamentos mais racionais.
Outro desafio famoso, ser o primeiro a chegar ao bar do
Juca, para que um instrutor nosso, frequentador de
carteirinha do local, já o encontrasse bebendo todas,
para mostrar que sua “unidade de carburante” era igual
ou maior que a do frangalhal.
Muita gente vendia de tudo na Ala. Certa vez dispôs-se a
comercializar meias e agasalhos pequenos: num instante
ganhou a freguesia de outros notáveis e conhecidos
regatões, por pouco não os levando à falência e ao
desespero, tanto que imploraram para que abandonasse o
comércio.
No final dos anos sessenta os tenentes que serviam no
Curso de Intendência da AMAN lembraram-no para ocupar
uma vaga de instrutor. A impressão que ficou é que
nossos antigos instrutores respeitavam-no, mas temiam
pela inteligência cáustica e brilhante, daí descartarem
seu nome.
Mas a AMAN contou com trabalho competente dele, em
77/78, no Curso de Intendência, ao mesmo tempo em que
fazia uma faculdade civil em Lorena e se preparava para
o concurso da ECEME. Dizem que era o terror de uns
tenentes meio largados – nenhum deles atingiu o
generalato – quando examinava com esmero os planos de
sessão e as propostas de provas. Se não estivessem bons,
voltavam com a observação: “faça um gabarito e não um
gambá-rito!”. Ao deixar a função legou ao substituto o
melhor planejamento anual que o C Int teve, em todos os
tempos. Pena que intervenções não muito bem explicadas,
naquele período que intercala o final de um ano letivo e
o início de outro, alteraram a essência do planejamento,
e os sucessores tiveram de recomeçar da marca zero.
Reencontrei o Nocchi em 93, designado meu “padrinho” na
ECEME, uma figura destinada a atenuar o choque de
chegada à Praia Vermelha e o retorno à condição de
aluno. Basicamente é uma passagem de dicas e macetes que
vão desde o melhor horário para estender roupa na corda,
itinerários dos ônibus, comércio nas imediações, melhor
horário e itinerário para corrida, informações sobre
provas escolares, etc. Padrinhos mais afoitos dão uma
olhada no apartamento do afilhado, antes da entrega das
chaves, para ver se há alguma coisa a providenciar,
marcam elevador, para subir a mudança, reservam escola e
transporte para as crianças, e por aí afora.
O ápice do apadrinhamento está na entrega de um
papelório enorme composto de fichas de estudo, das
indefectíveis Pubs, manuais, mapas, muitos calcos e
esboços sobre a matéria do primeiro ano. Há quem leve
essa parafernália em um carrinho de mercado, abarrotado
com caixas de arquivo morto ou pastas A-Z com orelhas,
calcos já passados para o plástico, gabaritos para
bolotear núcleos de defesa, áreas de apoio logístico,
etc., tudo acompanhado de solenes e extensas explicações
sobre a utilização de cada papel.
Ele, como sempre, foi inovador. Deu-me as boas vindas e
foi logo avisando que não tinha nada para me passar,
jogou tudo fora porque não via utilidade em guardar
aquelas coisas de um ano para outro. Em compensação eu
teria mais tempo para decidir o que estudar. Seu
raciocínio tinha uma lógica: com tantos instrutores
brilhantes a Escola não iria ficar repetindo exercícios
do ano anterior. Quanto aos fundamentos, a cada ano até
o “Santana( )” sofria pequenas alterações, que
invalidavam as edições anteriores.
Se eu tivesse alguma dúvida, deveria perguntar a ele
antes que fosse para o Círculo Militar, ritual que
cumpria ao final da tarde, para saborear um “paulipetro”,
drinque de vodca com Fanta laranja. Lá pelas nove ou dez
da noite retornava, geralmente junto a – entenda-se:
escorado - um ou dois solícitos amigos, e ia dormir. No
dia seguinte estava inteirão e perfeitamente lúcido.
Dentre as peripécias em aula ficou famoso por haver
gabaritado uma prova de apoio administrativo, a que ele
denominava “prova da costureira”, porque andava com o
curvímetro pela carta toda (que lá é uma coleção de
folhas coladas, coisa que pode chegar a 3m x 3m), como
se fosse uma carretilha de alfaiate. Dizem que dispensou
a mesa, jogou a carta no chão e saiu passeando por cima
daquele “tapete” de papel, cantarolando uma musiquinha
para animar. Perguntei se era verdade essa modelagem no
chão e ele respondeu com a mais sonora gargalhada desse
mundo, e uma frase: “só leve a sério as coisas sérias!”.
Terminado o curso foi para Brasília, estagiar em algum
lugar da área da SEF. Um ano mais tarde também fui para
a Capital, para o CMP, mas já o encontrei fora do
Exército. Inscreveu-se num concurso público, daqueles
com dois mil candidatos por vaga, e foi aprovado com
distinção. Já tinha tempo de serviço de sobra, pediu
transferência para a Reserva e passou a trabalhar na
área de auditoria, em outro Ministério.
Embora fora da Força, nunca deixou de, à sua maneira,
prestigiar os amigos, mantendo com todos ótimos
relacionamentos. Mas tornou-se um tanto arredio, não
dando retorno aos e-mails, mas isso não era novidade
para quem o conhecia. Talvez não suportasse a enxurrada
de asneiras que soltamos – e recebemos - a cada momento
na web.
Pela informação que recebemos sua Missa de Sétimo Dia
teve maciço comparecimento de amigos, com destaque para
os companheiros do trabalho atual, no Ministério do
Trabalho e Emprego, prova de que continuou até o final o
mesmo Nocchi simples, aglutinador de amizades, leal,
brincalhão e sagaz de todas as épocas.
Quando Barack Obama pronunciou a frase que se tornou
célebre, “Yes, we can”, estava dizendo menos do que o
Nochi; para quem conviveu com ele, o “paisano de Macaé”
diria “Sim, nós faremos – e melhor!”. Nunca encontrei
alguém que tivesse servido com ele e lhe fizesse
qualquer restrição ao companheirismo e à capacidade de
trabalho.
É triste, mas necessário, um testemunho sobre o que
todos nós sentimos pela perda desse colega.
Esteja na Paz do Criador, grande amigo!
À esposa Marinete, aos filhos e demais parentes nossas
sentidas condolências.
(Texto publicado no
“O Intendente 1962” de 30 Jun 09, de autoria do Tuducax
Int Amaury de Paula Teixeira).
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