aman 62

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

         

Crônicas do Cruzeiro Marítimo no Opera

O iceberg terrorista (II)

 

Hiram Câmara

Dia 26 – D+1 "al mare"

Ao acordar, porta da varanda aberta, dei de cara com um elevado,  caminhões e carros transitando, e mais ao longe, prédios. Fui à varanda da cabine: um pátio pleno de "containers". Era o Porto de Santos. Uma manhã meio nublada. E um convite de programas em terra. 

O jornal de bordo não deixava dúvidas. Programa do Dia, horários, trajes para as atividades, descrição de Santos, informações sobre o segundo dia. A grande novidade: o treinamento de desembarque. Notícias sobre o show da noite, dedicado à música italiana. O jantar tardio. E a chamada Surpresa do Chef: uma e meia da manhã. No mais aulas de dança, boates, bares, piscina, golf,   jogos, ufa.

Acabei de ler o jornalzinho, e no banheiro da cabine, mais uma vez me surpreendi com a extrema energia despendida pela descarga do vaso, a lembrar um bate estacas. Era a pressão da água, tão logo se acionava o botão da descarga. Com uma violência de dar inveja a componente da "Tropa de Elite" e igualmente eficaz. Nada resta.

Banho tomado, bermuda e camisa, chinelão tipo franciscano, máquina fotográfica, gorrinho, saio da cabine, para a primeira das dez refeições do dia. Dou-me conta de estar com cara de turista. Encontramos o Mendes e a Alda. Haviam saído do Restaurante mais refinado, onde haviam ido tomar o café da manhã. Para quem está em um transatlântico de luxo, não me pareceram muito contentes: "Ali, é tudo à la Carte, e o garçon lhe serve um pedacinho disto, um pedacinho daquilo... saímos e viemos para o restaurante "self-service".

Lembrei-me mais uma vez do Titanic, e me nego a crer que seja uma fixação causada pelo temor de que um "iceberg" terrorista tenha se desprendido com o aquecimento global e, movido por uma energia ímpar e criminosa, estivesse se dirigindo, provavelmente, com ajuda de um GPS, exatamente na direção da proa de nosso navio. Não,  não era esse o motivo da lembrança. É que me lembrei de que lá havia um Restaurante refinado, as pessoas de dinner jacket e "black tie", e havia o deck dos irlandeses, lá abaixo da linha da água, onde a comida corria solta, a bebida idem e a farra   superava tudo. Quando Mendes e Alda entraram no "self-service", apesar da fila, certifiquei-me de que, realmente, o restaurante dos "irlandeses", só que 11º. deck,   deveria ser o melhor.       

Muitos desembarcaram e foram a Santos. Por mim, pensava: Esta viagem é uma "nota". A Santos, posso ir a qualquer hora. Desembarcar, nunca! Vou aproveitar ao máximo, tudo o que houver no Opera! Decisão tomada, e como 90% dos idosos, sentei-me em uma mesa do passadiço ( nego-me a dizer ponte)   e ali estabeleci meu "escritório".  Fotografando muito, e colocando em dia o papo com os companheiros que por ali passavam, em busca do restaurante "dos irlandeses". Mas excursionei até à piscina, com a sensação de que o tempo fechava e algo me dizia que ia chover. Aliás, não houve necessidade de algo me dizer nada, pingos parrudos, que nada tinham a ver com a garoa paulistana, começavam a cair sobre Santos. Mas para sorte dos "fuzileiros" que desembarcaram, logo pararam de cair.

Conversei com os companheiros convidados de outra turma, todas à volta da mesa do "escritório": o Dr Bevilacqua, médico do corpo e da alma, escritor, filósofo, grande praça!  Ali estava também o Miranda, que pertence à Comissão de festas da Turma de 1855, digo, de 195... .do Colégio Militar! Cremos que ali estivesse nos espionando, para tentar descobrir a próxima maravilha que vamos preparar para a turma,   e    poder   aplicá-la antes de nós. Como fazem os japoneses com sua conhecida " transferência de tecnologia" . Mas Miranda já entrou para o nosso time. É, igualmente, um amigo espetacular, e como Bevilacqua, valorizaram a viagem.

Hiram em sua mesa de "escritório", no "passadiço", com companheiros convidados, civís e militares de outra turmas.

Outro convidado foi meu colega de ECEME, um pouco mais antigo. Na Escola, o Valle era um ainda mais jovem Major e eu, ainda Capitão. O mais conhecido da Turma e já a ela agregado é o Murilo Souza. Da Turma de 58, o Murilo nos acompanha onde a Tuducax vai. Assim como irmãos espirituais – costuma-se dizer- muitas vezes são mais presentes que os consangüíneos, temos na Turma este irmão "espiritual", muito mais presente que alguns Cadetes de 62.  

Nessas filosofadas vãs, da mesa do "escritório", uma tese começou a ser criada: afinal, como é de lei, ali estávamos para fazer nada além do que...nada. E a tese até que tem algum fundamento.  

Discutia-se, justamente, sobre os ausentes. Um ponto se tornou pacífico: qualquer que seja o motivo, tem que ser respeitado. Foram levantadas cinco razões amplas, motivadoras da ausência, não necessariamente nesta ordem ( outras matrizes são igualmente válidas): - saúde própria ou de outrem; financeira; trabalho; necessidade de privacidade; atribuição de prioridade. Outras podem ser imaginadas, embora em um exercício feito, as que surgiram poderiam ser enquadradas nas apresentadas. Quaisquer que sejam, todas devem ser respeitadas. Embora torçamos para que todas as razões se dissipem e um número crescente de companheiros compareça. E convivam estes momentos tão inesquecíveis que aqui estou, uma semana depois, escrevendo sobre o que está fixado ainda na mente e no coração.  

Mas de tanto conversar, chegou a hora do almoço. Já passaram pela mesa do "escritório" muitos colegas e suas esposas, na direção do "rancho". Todos para o "self-service" . Então também fomos. E lá está a fila. Bem, um dia iremos almoçar no Restaurante refinado e vamos provar o "a la carte". Mas hoje, o restaurante dos "irlandeses" está mais apetitoso, e toda esta conversa deu fome.  

 Não podemos esquecer: hoje é dia do treinamento de desembarque de emergência. Desde que terminei a AMAN, nunca mais tinha recebido instruções tão estritas. TODOS. NÃO PODEM FALTAR. É óbvio que eu compareceria. Havia descoberto,  assim, que alguém no Comando do navio também considerava a hipótese do "iceberg terrorista"!  

E com receio de haver a prática ainda não revelada do licenciamento sustado, tratei de cumprir à risca. Primeiro, temos que nos lembrar onde está o salva-vidas. Na Cabine. Certo! No armário. Certo! Então é só ir à Cabine e apanhar o salva-vidas! E descubro que bati a porta da cabine e o cartão magnético – aquele em que gravamos a alma, lembram-se?- ficou lá dentro. Sem o cartão, não existimos a bordo. Sabemos disto. Nisto, chega Cláudia e nos salva. Faltam quinze minutos para o treinamento. Não acho os salva-vidas. No armário não está. Mas - ôpa- acho os roupões, os quais se eu não localizasse e não informasse em tempo, ficaria devedor de um caminhão de dólares. Tanto, que penso com economia feita, abrir um negócio de fornecimento de roupões para transatlânticos. Não me salvei ainda, mas salvei dólares.  Mas, finalmente, lá no fundo da parte de cima do armário, descobrimos  os salva-vidas, e atrás da porta conferimos nosso ponto de encontro e fomos para o local.  

O que seria ridículo para uma só pessoa, agora não parece ser:  todos de salva vidas e apito. Gordos mais gordos ainda e magros engolidos pelo coral com placas fluorescentes.  As instruções foram dadas, e quando todos esperavam descer aos escaleres e alguns já pensavam que, pelo menos, no Atlântico sul, plataforma marítima,  ninguém iria congelar.   Muitas piadas mas um assunto sério passou por muitas cabeças e acabou sendo verbalizado:  se embarcamos ontem e o navio se deslocou entre Rio e Santos, à noite, o que teria acontecido se aquele iceberg alucinado tivesse se lançado contra nós?  Não teria sido mais oportuno, se tivéssemos treinado, por exemplo, ontem, e em exemplo mais explícito, logo que embarcamos, antes de o navio desatracar? Mas , depois de verbalizada a situação também virou piada. Afinal, havia motivos concretos para rir: a noite já tinha passado, estávamos ancorados e já aprendêramos a desembarcar. Agora, sim!  

A partida de Santos na direção de Búzios foi outro grande momento. Desde a desatracação, a quantidade de pessoas no cais, despedindo-se do navio, depois no litoral da cidade, e finalmente, duas cenas espetaculares. Primeiro uma grandiosa e farta queima de fogos de artifício e soltura de balões na margem oposta ao caís  e depois por alguns minutos, já na saída do porto para ganhar mar aberto, a lancha do prático - o profissional que conduz o navio no canal de saída- acompanha o navio, bem próximo. Mas, o que ele está fazendo? Aproxima-se ainda mais. Muitos acham que o piloto da lancha é doido. Outros, que ele andou virando alguma "boa idéia" acima da conta na hora do almoço, lá no porto. E a lancha cada vez mais próxima, vencendo as ondas que se formam com o avanço do Opera.     Eu já estava classificando o piloto como irresponsável, quando algo inacreditável e até certo pondo medieval, para os padrões de excelência e modernidade marítima, ocorre, à nossa frente, como um número de um show espetacular, com toda a redundância que o fato exige: quando a lancha estava a menos de um metro do casco do navio, aparece em uma abertura do casco, lá embaixo, junto a linha d'água, um homem e salta sobre o espaço existente entre o navio e a lancha, e se agarra a uma armação existente na lancha.  Era o prático, agora sob intensa salva de palmas do pessoal que estava lá em cima, na pont... não, no passadiço!

A realidade é que, bastaria um pequeno passo em falso e o homem não teria   salvação. E tão confiante no que faz, que nem o salva-vidas com que treinamos, ele usava. Não haverá uma forma mais segura que evite aquele espetáculo, cujas palmas eram mais de alívio que de satisfação pelo que haviam assistido? Lá do mar, o prático acenava, agradecendo o aplauso. Ouço a voz da Cláudia: por esse motivo ganham tão bem.  

Fotografei, mas perdi a foto do salto. Se alguém tirou, envie-me. Quero guardar este momento, que um dia será menos arriscado, talvez com um pequeno vôo de helicóptero. 

Ora, e já vai chegando a hora de se aprontar para o quê? Comer!!! Deus, não sei como o Restaurante fica cheio às quatro, às cinco fecha , e as sete está novamente cheio. Passo pela porta e me parece ver a mesma fila de antes, pois as pessoas são as mesmas. A refeição e o horário é que são outros.

Opa, já havia me esquecido do tiro de 106 sem recuo que o vaso proporciona. Banho tomado, roupinha da missa para de noite, estou pronto para o show. Música italiana. D'Elia babando de satisfação. O cantor cantará de certo, "Champagne" , "   O sole mio", " Tornerò!"  Não! Cantores espetaculares, e números maravilhosos, como a do atleta – e não era mais nenhum garoto- que faz dos músculos de seu corpo, de suas articulações, de seus nervos, o que quiser.  E as bailarinas russas, sua elegância, sua beleza, a "limpeza"de seus passos . "Ah, meus tempos!"   Não que em meus tempos as conquistasse. "Ah, meus tempos" significa: quando eu levava Christiane para o ballet, que depois chegaria a bailarina do Teatro Municipal, atraída para   a dança, depois de assistir Daniela, filha do Aguiar e Marlene.  O show do segundo dia superou o do primeiro e isto ocorreria a cada noite.  

God!!! É hora do jantar. O tempo passou e são 22:45. Decidi não jantar, mas fui ao Restaurante, retomar o papo em chinês como o ADI e ver o desempenho do inteligente garçon romeno. Muito divertido, mas não consegui me fazer entender sobre o fato de que não ia jantar. ADI me trouxe uma salada farta, mais sorridente do que nunca. Como é  que eu ia adivinhar que o som de 'Não, obrigado" quer dizer "salada" em indonésio? Se não é, assim pareceu ser. Mas a verdade é que asalada estava excelente.

Mas, desta vez, tomei a iniciativa. Pedi ao romeno para me servir a "bunda mole".  

Retornei à cabine e encontrei um brinde da Monsanto, que parece ter sido colocado nossas cabines. Soube que não foram para todos os passageiros, mas nosso grupo o recebeu. Um jogo sobre transgênicos.

Fui à varanda, o Opera seguia o curso entre Santos e Búzios, já na direção do Rio. 

Desta vez, a lua ficava à disposição das varandas que estavam do outro lado. Justo. Eu já fora presenteado no primeiro dia. Ainda assim , ali permaneci um tempo, olhando o céu e o horizonte, com o mar escuro, sem qualquer reflexo, e ali, refleti sobre tudo o que Deus estava nos proporcionando. E vieram-me à cabeça, tantos amigos que gostaria que estivessem ali, também, mas que se enquadravam, certamente,  em um daqueles cinco motivos. E, então, fui dormir, respeitando-os. 

O Opera seguia como se flutuasse sobre um colchão de ar. E, o iceberg terrorista não atacaria nesta noite. Não nesta, pois eu estava muito feliz com aquela convivência Tuducax, e muito cansado. Nadar, hoje, não. Amén. 

FIM DA 2ª. Narrativa.